30.8.04

Em Deus Confiámos - Os Adoradores de Sóis

De todas as coisas más, ficar sem ar, morrer asfixiado, devia ser a pior. Era pelo menos assim que pensava Kurt Edel naquele momento, quando o ar que lhe entrava nos pulmões parecia não lhe chegar para todo aquele esforço. Roger Dipwater não parecia estar melhor. Paradoxalmente, era Karen quem apresentava um melhor aspecto. Alguns angustiantes momentos depois, Kurt conseguiu falar:
- Já não os ouço.
- Será que os despistámos?
- Não contem com isso. – disse Roger – Momentaneamente talvez, mas acabarão por descobrir-nos.
- Não sei o que pensa, Roger, mas eu não quero acabar vítima desses lunáticos. Se ao menos tivéssemos armas...
- Se ao menos não estivéssemos aqui... – disse Karen com um tom sarcástico.
- Na bolsa, em Outubro do ano passado, pensei que passara pelos piores momentos da minha vida. Agora vejo que me enganei redondamente.
- Mas que pretendem eles com toda esta farsa? Quem é que no seu perfeito juízo dá caça a outros seres humanos?
- Deus?
- Karen, isso podia ter muita graça num salão de chá em Londres, mas aqui parece-me de gosto duvidoso.
- Vocês alemães não têm senso de humor. Quando ele se perde, é porque a vida está também à beira de nos deixar.
- E é o que nos acontece, se não se calam. – Roger espreitava pelo bordo do buraco em que se tinham escondido. Uma grande moita de não-sei-o-quê e algumas árvores de bom porte tornavam-no invisível aos caçadores. Pelo menos assim o esperavam. – Se apanhássemos as armas deles...
- Se eu fosse o Super-homem... – Kurt e Roger olharam para ela com uma expressão zangada. – Ok, eu calo-me, fui longe demais.
- Pssstt... Calados!
Kurt já conseguia ver o primeiro, que lhe pareceu o Arcanjo Gabriel. Era realmente ele! Até aquele velho... Mas... seria velho realmente?
- Acho que já passou o perigo. – disse Roger – Afastam-se.
- Não sei como vocês se sentem, mas eu estou esfomeada. – Karen agarrou na mochila que lhe tinham dado (de sobrevivência, tinham eles dito) e tirou alguma comida de lá.
- Não tires tanto Karen, porque isso é tudo o que teremos.
- Eu sei, Roger.

Resolvemos ficar no buraco durante a noite porque se revelara suficientemente seguro para ali ficarmos até o sol despontar. Karen adormecera logo, a face suja e fustigada pelos ramos dos arbustos meia oculta no cobertor escuro. Kurt resmungava ainda, tentando arranjar uma posição mais confortável. Eu próprio estava muito cansado. Tinha sido uma fuga de várias dezenas de quilómetros, os caçadores tinham saído apenas quinze minutos depois de nós e eram rápidos. Quem eram os caçadores? Todos os outros, todos os que não estavam ali enganados, como nós.
Existem sorteios que não o são. Eu desconfiava que aquele não o tinha sido. Do sorteio da tômbola tinham surgido os números que nós os três possuíamos, e transformara-mo-nos na presa de todo aquele bando. A festa da tômbola era isso: o sorteio das presas de uma caçada insensata por uma floresta de sonho. As presas seriam sempre os convidados? Desconfiava que sim, uma serpente não se devora a si própria.
Ali, naquele buraco escuro e húmido, teria gostado imenso de ter entre as minhas mãos o pescoço de Douglas Lapuane.

O trilho era estreito e fora talvez talhado por outros desgraçados que tinham desempenhado aquele mesmo papel antes de nós. O sol ali chegava quebrado, mil vezes reflectida a sua luz no entrelaçado dos ramos. Formava manchas de luz que se remexiam no chão coberto de folhas secas, mortas há muito.
- Aquele louco será quem diz? – perguntou Kurt.
- Já não sei nada. Talvez...
Eu preferi ficar calado, também não sabia a resposta. Seria ele Deus? Um Deus louco? Porque não, ligava perfeitamente com tudo quanto conhecíamos! Um mundo louco, um Universo desordenado, entregue à sua própria loucura. A loucura rege o Universo. Eis o novo dogma que além de o ser, também é a verdade.

A casca das árvores pode soltar-se por sua livre vontade e executar danças loucas no ar parado das florestas? Não, a menos que seja obrigada a isso. A casca da árvore à minha frente dançara, acordada perenemente pela bala que a atingira.
Ninguém faz tiro a troncos de árvore com balas de elevado calibre, a bala era dirigida a mim. Quando me apercebi disso, e o meu cérebro me resolveu ajudar, empurrei Karen para o chão e berrei para Kurt com toda a força dos meus pulmões: – Kurt, cuidado!

No instante em que Roger me gritou estava absorta com pensamentos deslocados para a situação em que me encontrava. Não me apercebi logo do que acontecera até ligar o som ouvido uma fracção de segundo antes à acção de Roger e ao seu aviso a Kurt. A compreensão de tudo isto só sucedeu quando eu e Roger chegámos ao fundo da ribanceira pela qual nos tínhamos precipitado.
Levantámo-nos, aturdidos e magoados, mas logo o apelo da sobrevivência nos fez saltar como gazelas para longe dos caçadores. Kurt? Não o vira mais.

- Deve ter sido apanhado, Karen...
- Pobre Kurt, tão falho de senso de humor.
- Eles estão a seguir-nos a pista, desta vez não os despistámos.
- É engraçado, Roger! O som dos ramos quebrados por eles parece vir da nossa frente e não de trás.
- Sim... Será outro grupo? Em todas estas horas depois do nosso mau encontro podem ter comunicado com outros. Estamos nisto há dois dias, Karen... Acabarão por nos apanhar.
- Alto! Não tentem escapar! Não têm hipótese nenhuma e todas as pessoas do meu grupo têm uma vontade louca de dar uns tiros. – Jesus Cristo falou com voz forte e decidida. A timidez que transparecera dele alguns dias antes desaparecera totalmente.
Estávamos completamente rodeados por um grupo de pessoas que tinham estampada na cara a excitação macabra que lhe ia nas almas.
- Esfolamo-los, como fizemos com aqueles três que...?
O homem não acabou a frase, o que lhe saiu da boca não foram palavras. O que lhe jorrou da boca foi sangue, misturado com pedaços do seu crânio agora despedaçado.
Depois foi tudo muito confuso. A última coisa que vi antes de me atirar ao chão junto com Karen foi Jesus Cristo caindo sem vida até ao solo, varado por várias balas, chagas vermelhas na roupa escura de caçador.
A primeira coisa que vi, quando os tiros deixaram de se fazer ouvir e soergui um pouco a cabeça para ver o inferno à minha volta, foi o rosto de Kurt, que se encontrava acocorado junto de nós. O rosto moreno indicava uma longa exposição ao sol, mas nós só ali estávamos há poucos dias. As coisas ali eram estranhas, nem valia a pena tentar explicá-las...
- Roger, estás cheio de terra e pó! Levanta-te daí e ajuda a senhora a levantar-se.
Kurt não estava só. Os estranhos tinham um aspecto diferente da turba que nos atacara e agora jazia em poças vermelhas pelo solo circundante. Um deles destacou-se dos demais e colocou-se ao lado de Kurt. A sua tez morena fazia Kurt parecer pálido.
- Olá, amigos de um amigo. Que o sol dos tempos vos ilumine as vidas. – disse pausadamente e depois voltou-se para Kurt – Agora temos de ir, os outros diabos aproximam-se.
- Vamos.
Obedeci a Kurt e avancei em passo rápido, com Karen ao meu lado tentando acompanhar-me.
A última coisa que vi foi Cristo de boca aberta, o sangue vermelho espalhado pela poeira ocre do solo e as mãos sem marcas de cravos enclavinhadas na erva indiferente.

1 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Olá:
Sou eu, Pietra, novamente. Só queria dizer que achei a história muito interessante e quero saber o que vai acontecer em "Em Deus Confiámos - Visitem a Velha Árvore" e "Em Deus Confiámos - Outubro". Poderias continuar a história?

1:24 da tarde  

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